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Final de análise e o gozo feminino

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A linguagem afeta o corpo e o psíquico, causa furos no corpo através da contingência significante na experiência singular de cada um levando a identificação com o sintoma, é o que referencia Brousse (1920). Como o analista opera com isso para se chegar ao gozo?

O gozo feminino vai além do binarismo masculino e feminino, ex-siste, não-todo regido pelo fálico, fora da cadeia significante. É o gozo como tal, não é coisa de mulher, se entrega ao exílio do Outro, um acontecimento de corpo, fora de sentido.  O corpo que se trata aqui não se define pela imagem, ou pela forma, como o corpo do estádio do espelho, nem é o corpo que seria da relação sexual, mas um corpo material feito pelo choque com a lalíngua que fez dele um aparelho de gozo, não simbolizado e indizível. É o que Fernanda Otoni, Ana Lucia Lutterbach e Elisabete Siqueira ressaltaram no Eixo de orientação do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.

            Lacan (2008) fala que a mulher não pode se escrever, é enunciada pelo não-todo e o a só existe barrado. A mulher se relaciona com esse Outro, esse lugar onde vem se inscrever tudo o que se pode articular o significante e ao Outro barrado. A mulher pode ou não ter relação com o falo, relacionando-se ao gozo infinito.

Como a partir desse infinito, o analista pode operar na invenção de laços? Como o analista opera com o que está inerte, com o que não faz história, com o que não cessa de não se escrever? Como esse infinito, sem limite se relaciona com o infamiliar? E como o analista opera com ele relacionando ao fim de análise?

O estranho para Freud (1996) remete ao que é assustador, o que provoca medo e horror e ao mesmo tempo ao que é conhecido de velho e familiar. Freud fala em algo reprimido que retorna, um estranho que não é nada novo, mas que deveria ter ficado oculto. Podemos pensar também em algo da imaginação que aparece na realidade, como a psicose que não tem uma fantasia para se proteger, sendo algo amedrontador para ele. Já na neurose o sujeito se defende do exílio do Outro com a fantasia, mas a idéia do aprofundamento é o que fica de fora da fantasia, do recalque.

Sergio de castro em seu texto “ O unheimlich , o feminino e o retorno dos patriarcas” relaciona o infamiliar ao gozo feminino já que ambos rompem os limites imaginários e simbólicos.

Alvarenga em seu texto de orientação para o XXIEncontro Brasileiro do Campo Freudiano chamado  “o objeto da angústia” fala do uheimlich, o infamiliar e o feminino a partir da elaboração do objeto a, como objeto da ordem do real e não um significante.

 A umnheimlichkeit, nome dado à angústia por Lacan (2005) aparece no lugar da castração sem a imagem da falta, indo além da sustentação fálica, além do significante, dando acesso à irredutibilidade do real. Fala dos objetos que não faltam que causariam a angústia, um sinal de aproximação.

Se o significante não dá conta do seu modo de gozo de sujeito, como a análise pode livrar o sujeito de sua submissão ao objeto a? Como acessar a pulsão e o que fazer com ela?

O fato do objeto a ser irrepresentável e não significantizável, não significa que ele tenha de ser eliminado ou retido. É possível fazer um enigma com ele, apontar para onde faz furo, é o que diz Lacan (2003). Há o furo do saber preenchido com gozo. A letra simboliza os efeitos do significante, sendo o significante primário. O significante é habitado por quem fala e a letra é consequência. Essa letra é morada do vazio, preenchido pela angústia, mas apoiando o significante. Lacan fala do rompimento do semblante deixando a marca do traço unário e da pulsão, o gozo no real.

 Novamente Alvarenga cita que a angústia sentida pelo sujeito transforma o gozo resto de toda significantização e da imaginarização em objeto causa do desejo e que a angústia aparece quando surge algo no lugar da castração, um quantum suplementar de exigência pulsional como objeto que permanece investido em um gozo auto-erótico.

Já o desejo, diz Lacan (2008), se inscreve por uma contingência corporal. O falo é a causa do desejo que não se escreve. No discurso analítico o a se sustenta pelo s2, quer dizer, pelo saber no que ele está no lugar da verdade. É dali que ele interpela o S, o que deve dar a produção de s1, do significante que pode resolver a relação da verdade, a regra do gozo. O analista ao colocar o objeto a no lugar de semblante interroga o saber colocado no lugar da verdade. Descobre-se que há um saber que não se sabe, que se baseia no significante como tal.

Existe um sentido gozado de acordo com Miller (2015), que seria a junção do significante e do gozo que resulta na identificação fálica, ou seja, união entre simbólico, imaginário e real, a fantasia.  Separar o sentido do gozo fazendo um enigma nessa causa de desejo, seria um caminho para o gozo feminino e seria essa a função do analista? Será que com isso é possível afinar-se com a pulsação do falasser?

Lacan (1998) fala sobre o analista pagar com palavras, para efeito de interpretação. Paga também com sua pessoa, já que empresta sua pessoa para suporte aos fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência. O analista é o homem para quem se fala livremente, porém Lacan mesmo realça que nada é menos livre, já que a linguagem não preenche tudo, o ser de linguagem é o não-ser dos objetos. O desejo é a impossibilidade da fala. Como acessar o real via essa impossibilidade?

O gozo feminino, segundo Bessa (2012) exige ao parceiro amoroso que se apresente como A, que lhe falte algo, justamente para que ele lhe fale, uma falta que o faça falar. Faltam-lhe palavras. Como o analista opera com isso em análise?

Lacan (1998) fala da escuta do analista para além do discurso, devendo ouvir sem a pretensão de compreender e que ao compreender se engana. Deve se calar e com isso frustra o paciente, o deixando sem resposta. Paga-se o analista por esse nada, e assim aparece os significantes que o marcaram e a sua falta a ser. O analista deve-se obrigar ao silêncio para reencontrar o ser desabitado?

É o que afirma Irene Kuperwajs quando fala que o analista se cala para que o outro fale e que ao falar deve colocar um limite no monólogo autista do gozo.      

Ao destituir o Outro, a fantasia, o objeto, cabe cada analista com a sua singularidade encontrar formas de fazer diferente da interpretação inconsciente do seu analisante e escutar esse gozo que não fala, o gozo feminino, para que cada sujeito possa tecer o seu nome, um semblante que não se confunda com o objeto a e com falo, mas sirva-se dele para esse impossível de dizer.

 

Bibliografia

 

Bessa, G. L.P. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte. Scriptum Livros, 2012.

Brousse, Marie-Hélène. “As identidades, uma política, a identificação, um processo, e a identidade, um sintoma”. IN: Opção lacaniana on-line. Nova série. N. 25/26. ano IX. Julho 2018. Disponível em:
http://www.opcaolacaniana.com.br/texto5.html

Freud, S. “O estranho” . IN:  Uma neurose infantil e outros trabalhos. Obras completas, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

Lacan, J. [1962-63]. O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

 Lacan, J. [1972-73] O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008

Lacan, J. [1958] “A direção do tratamento”. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998

Lacan, J. [1971] “Lituraterra”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.  

MILLER, J. A. O osso de uma análise. O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Zahar. 2015.

Alvarenga, Elisa “O objeto da angústia” IN: Encontro Brasileiro 2020. Disponível em http://www.encontrobrasileiro2020.com.br/-o-objeto-da-angustia/

Castro, S. “O unheimlich, o feminino e o retorno dos patriarcas”  IN: Encontro Brasileiro 2020. Disponível em http://www.oencontrobrasileiro2020.com.br/o-unheimlich-o-feminino-e-o-retorno-dos-patriarcas/.

Lutterbach, A. L., Siqueira, E. , Otono, F. “Gozo feminino ou gozo como tal” IN: Encontro Brasileiro 2020. Disponível em http://www.encontrobrasileiro2020.com.br/eixo-2-o-gozo-feminino-ou-o-gozo-como-tal/.

Kuperwajs, I. “Silêncios”. IN: Encontro Brasileiro 2020. Disponível em http://www.encontrobrasileiro2020.com.br/-silencios-/

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