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Psicose e sua estruturação
Poder aprofundar e entender o que acontece ajuda muito a lidar com o caso a caso e por isso é extremamente importante entender como a Psicanálise Lacaniana vê o tema.
Na psicose, segundo Freud (1924), o mundo exterior não é percebido de modo algum, ou a percepção dele não possui qualquer efeito. Nesse estado, não se aceita novas percepções e até mesmo o mundo interno que foi criado como cópia do mundo externo, perde sua representação e é construído um novo mundo de acordo com os impulsos desejosos do id. O motivo disso seria uma frustração séria de um desejo por parte da realidade, uma frustração que parece intolerável. O delírio entraria no lugar dessa fenda criada entre o ego e o mundo externo. Paulo Vidal em o legado de Freud relata que no delírio, o psicótico ouve nas alucinações o que o neurótico recalca. Freud (1894 p. 71) apud Paulo Vidal fala que na psicose o ego rejeita a representação insuportável e seu afeto se comporta como se a representação nunca tivesse chegado ao ego. Ao rejeitar essa representação, nega parte da realidade também.
Segundo Lacan (1955-1956), nas Psicoses, o inconsciente está à superfície, é consciente, apesar de que o sujeito ignora a língua que ele mesmo fala, aparecendo no real. O psicótico recusa o acesso ao mundo simbólico, nada querendo saber sobre a ameaça de castração e tudo que é recusado na ordem simbólica, reaparece no real, já que não foi simbolizado, pensado pelo sujeito. A forclusão de acordo com Almeida (2012) significa a falta da inscrição simbólica da castração. Forclusão não é causa, mas é condição essencial para ocorrência da psicose, porém o que dá desencadeamento depende do momento da vida. A crise psicótica ocorre, segundo Ramalho(1995), quando alguém em um determinado momento de sua vida tem a necessidade de responder a uma referência, mas como não a tem simbolizada, emerge no real, como alucinação ou delírio, que ajuda o sujeito se situar-se a um grupo social. Como não tem referência simbólica , ele constrói então essa história para poder se situar.
A questão a ser feita é: Por que o sujeito não consegue lidar com a castração? Existe algo da estruturação desse sujeito que impede, ou seja, quem fala? Quem é este sujeito? Para essa questão ser respondida, é necessário verificar quais os significantes em que o sujeito está ligado, sendo que o significado do significante é totalmente singular, não deve ser generalizado. Esses significantes terão o significado que dependerá do sistema de linguagem desse sujeito e estão ligados a um outro, que de alguma forma deposita seus desejos, dá a unidade para esse sujeito, então o sujeito depende desse outro, de como se estrutura esse outro. O ser humano a princípio é mais
outro do que ele mesmo, é coleção de desejos e nada se sabe sobre isso. O outro lhe dá a unidade, lhe transforma em centro e acaba sendo objeto de desejo desse outro.
Segundo Vorcaro(2002) a criança deixa-se conduzir pela função materna que responde com objetos e palavras, para apaziguar sua tensão. Esse ciclo cria um ritmo para a criança que faz com que ela espere o que está por vir, ficando marcada por esse apaziguamento e pela tensão, pelos gestos, atos desse cuidador, ficando com a referencia temporal e com a marca dessa regularidade, e até mesmo das ausências. Isso a organizará e marcará a forma do seu gozo e com a definição de sua superfície corporal. Quando ocorre a quebra dessa alternância, ocorre a busca dessa criança por esse lugar. É como se a criança não soubesse o que perdeu, mas quer de volta, quer ser vista, quer ver, quer oferecer, recusar, quer esperar, ser esperada, ela quer lidar com tudo o que foi marcado no seu corpo. A criança utiliza o mecanismo de retenção ou contenção de seus excrementos como forma de resposta e apelo à demanda materna, assim como os diversos mecanismos utilizados pela criança.
Segundo Bergés e Balbo apud Vorcaro (2002), o ciclo tensão/apaziguamento inscrevem os significantes da criança, a marca com o apaziguamento e com a espera, com a satisfação ou não, mesmo sendo de forma cifrada. Desse suporte da mãe e a forma como é feito esse suporte, como são feitos os cortes, os buracos na criança, os afastamentos sucessivos, a criança mantém o que foi inscrito buscando o gozo durante toda a vida.
Na psicose, segundo Lacan(1955-1956), novamente, na realidade exterior houve em um momento um buraco, uma ruptura, dilaceração e o mundo fantástico virá a repor este vazio. Mas de que buraco estamos falando? Existe um buraco que o faz precisar da alucinação e do delírio, mesmo sabendo que não é real. Mas a certeza do delírio e da alucinação é inabalável para ele. Mas que buraco é este, como se dá tudo isso que o faz psicotizar, se eximir do real?
É como se o psicótico, novamente de acordo com Lacan (1955-1956), necessitasse do reconhecimento do outro ao discursar sobre os seus delírios e alucinações, já que apesar dos delírios e das alucinações terem a sua significação, é como se tivesse um vazio do próprio sujeito nessa significação, apesar de falar um pouco de como ele se coloca no mundo. O sujeito não consegue falar sobre o que representa essa significação, já que para ele estar no delírio ou na alucinação é porque não foi simbolizado pelo sujeito. É como se para o sujeito, em algum momento de sua existência, fosse revelado algo no real que ele nunca tenha conhecido, e é sentido como
estranheza total, que seja necessário remanejar todo o seu mundo, ficando impossibilitado de restabelecer o pacto com o outro, já que não consegue fazer nenhuma mediação simbólica entre o que é novo e o que ele já viveu, faz um novo processo de mediação, que está relacionado com o imaginário. Segundo Ramalho (1995) Na crise, o psicótico fica com a sensação de não poder se apegar a nada, com uma sensação de fim de mundo, como se não tivesse história, sentindo-se despedaçado.
De acordo com Pankow(1983) A psicose se caracteriza por um estado de desordem, devastação,de uma destruição da imagem do corpo de forma que suas partes perdem a ligação com o todo,abolição de um laço que ligue, onde não se pode nem ser reconhecido como parte disso. Existe uma dissociação do plano corporal e do plano existencial, mas da onde vem tudo isso?É como se o psicótico não se desse conta de sua própria corporeidade. Essa desagregação da imagem do corpo está ligado a situação edipiana incompleta e não bem digerida. Segundo Lacan(1955-1956), a relação com o mundo vira uma relação de espelho, já que o eu é um outro e é como se esse outro fosse dominá-lo, mesmo na relação erótica, é como se alguém tivesse que ser excluído, ou ele ou eu, um outro que é estranho, que é, de certa forma, estranho ao sujeito, com seu comportamento, instintos e pulsões. Dessa forma, aparece os conflitos e é preciso que o sujeito faça uma escolha. Esse outro está sempre no interior e no exterior, sendo muito instável, e difícil o equilíbrio disso. Então, para se ter uma constituição do sujeito dita como saudável, é necessário que intervenha um terceiro, é necessário que essa relação imaginária caia, é preciso aí uma lei, uma cadeia, uma intervenção na ordem da palavra do pai, não necessariamente o pai natural.
Rudolf(1990) relata que o esburacamento do sujeito, ou seja, uma castração precoce, não traz uma separação simbólica saudável, traz destruição ao extremo. Castrar antes é como se fosse uma amputação, um ataque a unificação corporal, pois o sujeito ainda não tem estrutura para lidar simbolicamente com a situação, e a criança acaba por ter que arranjar mecanismos de defesa que suportem, e não consegue evoluir os estágios que precisa, muitas vezes tendo que fabricar uma superfície para ser ou parecer, forjando um contato relacionado ao olhar materno. A perda traumática de algo que a envolve em um momento crítico pode ter uma ruptura narcísica. O volume como traço do corpo do sujeito e do Outro é conseqüência do processo de superfície, de fusão e posterior separação serem realizados no momento certo pela dupla mãe/bebê. Para poder separar-se deve estar muito unido, e a separação antecipada, acelera o processo de diferenciação no qual, ele ainda não está pronto, tornando-se aniquilante para o sujeito,
fazendo-o passar da onipotência para impotência, tendo que retornar, como defesa para essa onipotência patológica.
Novamente segundo Pankow(1983), é como se o psicótico tivesse que viver fora de seu corpo, rejeitando também com isso, sua memória, sentimentos, ou seja, parte de sua existência histórica, perdendo sua identidade. O corpo sentido e corpo reconhecido são destruídos, é como se não existisse leis que o fizessem ser reconhecido por bom ou mau.
Segundo Rudolf(1990), a teoria significante incide na constituição subjetiva do sujeito, sendo importantes os significantes inscritos no meio onde esse pequeno vive, desde os significantes inscritos na história de vida dessa família , em direção às gerações anteriores, onde ele ainda não existia, na pré-história desse sujeito, pois esses significantes influenciam no discurso e na forma de lidar dos familiares com essa criança. De alguma forma, acaba se repetindo nela. Um bebê precisa de rotinas, previsões, já que está em um mundo novo e já é muito imprevisível para ele. A rotina é uma forma do sujeito conseguir se olhar no outro e aos poucos conseguir simbolizar essa separação, ou seja, desta forma o bebê vai tomando corpo. Uma frase pode ser um significante familiar, desde que se repita de alguma forma nessa família, pode até funcionar como um imperativo para esse sujeito. O significante circula, não pertence a um membro da família apenas, atravessa gerações, sendo importante a forma como o sujeito se relaciona com esse significante, se o repete cegamente ou batalha para mudar isso. Segundo Lacan (1955-1956), através de uma linguagem dita, o sujeito pode acatar o discurso, pode refutá-lo, depende também do sujeito. Mas o que é interessante pensar é o que está por trás do psicótico, como se dá este discurso dos familiares. Como será que é a fala desse outro que faz o sujeito não simbolizar?
Cada vez que um significante é introduzido, de acordo com Rudolf (1990) algo novo, que se distingue, se produz, já que cada significante gerará significações que dependem do sujeito, não necessariamente do significado, a única coisa que podemos garantir é que existe uma posição familiar que situa o sujeito, mas que depende dos seus recursos o efeito. Alguns atos que se repetem, possuem um peso significante para o sujeito, como em algumas de suas repulsões ou preferências, mas às vezes, esses atos, discursos, estão do lado de quem rodeia a criança e acaba a influenciando. É interessante pensar como é esse lugar onde a criança vive, o que está em jogo nessa dinâmica. Outra pergunta que pode ser feita é “O que esta criança representa para o desejo dos pais, será ela gozo de sua família, será ela um sintoma ou vivendo
representando um fantasma familiar? A pessoa pode ser desejada para os mais diversos sendo importante captar como se dão as ideologias, atos, ditos, normas educativas da família do psicótico, a partir do mito familiar, que não é facilmente visualizável, às vezes escutamos apenas fragmentos. Novamente, segundo Rudolf (1990), dá pra se situar a tendência dominante desse mito e é muito importante que se dedique a isso na análise. Todos os dados clássicos, pormenores dispersos, só são importantes quando encaixados no Mito, como diz Lacan (1955-1956) “Tudo o que no comportamento humano da ordem psicológica está submetido a anomalias tão profundas, paradoxos tão evidentes, que é preciso nela introduzir para que a gata encontre seus filhotes”.
De acordo com Rudolf(1990), é necessário que o sujeito consiga furar de alguma forma esse mito para conseguir respirar,ter uma saída para ser ele mesmo, a produção de um buraco como condição de ser. É importante que o sujeito tenha como extrair os significantes e trabalhá-los com eles, repetindo ou não. Puxar, extrair, perfurar o Outro é essencial, para não ser objeto passivo de sua pré-história, o que é comum desde o 1º ano de idade. Em casos graves, o sujeito já adulto, utiliza esse buraco, esse perfuramento, como parte de um processo de construção de um lugar, que por algum motivo, não foi possível para o sujeito apropriar-se. É necessário poder atravessar o discurso, para permitir que o sujeito passe por esse buraco, para poder passar sobre o que representa para ele essa passagem. Proibir essa entrada do corpo do Outro faz com que o sujeito não tenha saída libidinal possível, conduz a impotência. Conforme o sujeito vai produzindo os seus buracos no Outro, conforme esse Outro vai permitindo e vai deixando sua marca, as zonas erógenas do sujeito são marcadas. É necessário abrir orifícios na mãe. As zonas erógenas são uma espécie de buraco, onde o inconsciente é marcado a partir desses buracos. O que é destrutivo para o sujeito é ter buracos para o gozo do Outro, ligado a discursos que não são seus e que não foram metabolizados por ele, o que acontece muitas vezes com o psicótico. Muitas vezes, esses discursos propõem verdades universais, segundo Alagnier apud Rudolf(1990), descartando as particularidades e é para isso que serve o esburacamento do discurso, para dar outras saídas ao sujeito atacado por essa rede discursiva.
Ou seja, novamente segundo Rudolf(1990) perfurações fora do tempo ou impossibilidade de perfuração tem graves conseqüências, o ambiente acelera ou bloqueia o desenvolvimento de alguns processos do sujeito, mas ele não é passivo do meio, apoiadas nele, a criança vai produzindo suas diferenças a partir do brincar, o sujeito não é uma marionete produto do mito familiar, ele se constrói a partir do mito. O
próprio mito tem suas contradições, e não dá pra esperar que a criança tenha somente uma direção a seguir a partir dele. Às vezes é necessário resgatar essas novas possibilidades para o sujeito. O mito é um potencial o qual não reconhecemos como ele será atualizado, não tem como prever exatamente como isso influenciará o sujeito porque depende dele o recorte que será feito e se será feito algum recorte e se vai ser possível se apropriar desses significantes. E na verdade, algumas vezes gera-se algo diferente do que se espera conscientemente, porque os pais não sabem ao certo o que estão reproduzindo, já que também estão de alguma forma sendo influenciados pela sua própria pré-história.
Dessa forma, o espaço Psicoterápico é extremamente importante para o potencial criativo do sujeito dar vazão a sua singularidade e não ficar colado a esse Outro. É necessário um lugar de escuta, um discurso que seja permitido ser do sujeito para que novas metáforas sejam constituídas e novos enlaçamentos sejam produzidos.
Bibliografia
Almeida, W. C. (2012). “A clínica das psicoses depois de Lacan”. São Paulo. Edição do autor.
Ramalho, R.(1995). A escuta do delírio na clínica da psicose. In: “Convivendo com a loucura.” APPOA.
Lacan, J. (1985). O Seminário. Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
(Trabalho original publicado em 1955-1956)
Vorcaro.A.,M.,R., (2002). O Jogo. Ou o ponto de imbricação entre educação, psicanálise e lingüística. In Lajonquière, D. L, Kupfer, M.,C.,(Orgs). Psicanálise infância educação pp (79-85). São Paulo.__________editora_____;Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
PANKOW, G. (1983) O homem e sua psicose. Campinas, Papirus, 1989
Rodulfo, R. (1990). O Brincar e o Significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Porto Alegre: Artes Médicas
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